Uma lona preta, alguns baldes de plástico, saquinhos de areia e duas barras de argila escolar. É assim que o cenário de “Tom na Fazenda” ganha vida e se entranha aos personagens e ao público de forma tão intensa, seja em apresentações pelo interior do Brasil, em grandes capitais ou no exterior.
Vencedor do Prêmio APCA em 2019 na categoria teatro, o espetáculo finaliza nesta quarta-feira (5) uma temporada histórica em Paris, que começou no dia 9 de março no Théâtre Paris-Villette. Foram 24 sessões lotadas (três delas extras!), ingressos esgotados e cerca de 5.500 espectadores no total, com reportagens em jornais de prestígio, como “Le Monde” e “Libération”.
De acordo com o Instagram oficial da montagem, foi a primeira vez que um grupo latino-americano se apresentou neste palco. “É muito bonito ver os brasileiros se sentindo bem representados. Eu sinto que eles ficam muito felizes e orgulhosos em estarem presenciando um espetáculo brasileiro feito no país deles, com a qualidade de trabalho que a gente tem apresentado”, diz o diretor da peça, Rodrigo Portella. (leia entrevista completa logo abaixo).
“Tom na Fazenda” estreou em março de 2017 e já realizou quase 300 apresentações no total. Escrita pelo dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, a história fala sobre Tom (Armando Babaioff), um publicitário que vai a uma fazenda no interior para o funeral de seu companheiro, mas, ao chegar, descobre que a mãe do rapaz (Soraya Ravenle) nem sabia de sua existência – e nem que o filho era gay. A partir disso, Tom precisa lidar com o agressivo irmão (Gustavo Rodrigues) do falecido e com sua colega de trabalho (Camila Nhary), uma estilista que surge como uma namorada fictícia.
Ainda sobre experiências internacionais, a peça se apresentou em 2018 no Festival TransAmériques (FTA), em Montreal, no Canadá – participação que lhe rendeu o prêmio de melhor espetáculo estrangeiro pela Associação de Críticos de Teatro de Quebec.
Abaixo, leia o bate-papo com Rodrigo Portella, o diretor, que também fala sobre novas turnês já programadas pela França e Europa.
Entrevista com Rodrigo Portella
Sobre o convite para a temporada em Paris
Eu fico brincando que não foi um convite, foi uma aposta. O diretor do teatro, Adrien de Van, não conhecia a gente. Ele conhecia a nossa difusora aqui na França, que foi contratada por nós por uma indicação do diretor do Festival TransAmériques, em Quebec. Ela é muito próxima ao diretor desse teatro e enviou a ele o link de uma gravação de vídeo [da peça].
Ele assistiu e, enfim, acho que conseguiu ter uma visão do que poderia acontecer. Foi uma aposta que não poderia dar certo.
O que fez o público francês gostar do espetáculo
Eu acho que é a mesma coisa que faz com que o público goste nos outros lugares, no interior do Brasil, nas capitais brasileiras, no Quebec, em Avignon [na França, onde já se apresentaram], no nordeste do Brasil, no sul do Brasil. Foi muito bom poder perceber que a peça tem um grau de humanidade, de universalidade na comunicação… ela se comunica bem com pessoas de todos esses lugares onde a gente já se apresentou. Isso me deixa muito feliz.
Então eu fico brincando que é uma aposta porque o diretor não viu o espetáculo ao vivo, ele viu um vídeo e entendeu que poderia ser uma experiência muito boa para todos nós. Para o teatro, em primeiro lugar, que está lotando todas as noites, para nós, artistas e técnicos, e também para o público parisiense que vai lá assistir.
Sobre o público mesclar franceses e brasileiros
A gente tem uma plateia bastante heterogênea, de pessoas mais idosas e pessoas mais jovens, a comunidade LGBTQIA+ também tem vindo, e o boca a boca tem trazido essas pessoas aqui.
Também tem tido muito brasileiro assistindo, e a gente sabe quando tem brasileiro porque as reações ao que acontece no palco são mais imediatas, sem precisar do intermédio da legenda. Tem vindo muitos. E falam com a gente no final, são sempre os primeiros a levantar.
Eu vejo que os brasileiros que vêm assistir ficam muito orgulhosos, e isso é tão bonito, tão interessante de ver nossos conterrâneos, que moram aqui, indo ao teatro para ver uma peça falada em português do Brasil e que é carregada de brasilidade.
Apesar de o espetáculo não vender muito esse folclore brasileiro, existe claramente uma brasilidade no corpo dos atores, e eu acho que as pessoas se reconhecem como brasileiros, não só pela língua, mas pela estética, pelos corpos, pelo tom que a peça trata e pela forma como a peça de comunica com o público. Eu tenho essa intuição.
E é muito bonito ver os brasileiros se sentindo representados – e bem representados, modéstia à parte. Eu sinto que eles ficam muito felizes e orgulhosos em estarem presenciando um espetáculo brasileiro feito no país deles, com a qualidade de trabalho que a gente tem apresentado.
É um pouco difícil falar isso sem parecer meio pedante, mas são quase 300 apresentações, e muitos lugares diferentes. A gente já entendeu que o trabalho que a gente faz é bom e tudo bem também, a gente não precisa ficar fingindo que não. A gente fica muito feliz de poder compartilhar esse trabalho com pessoas de faixas etárias diferentes, de classes sociais diferentes, de países e culturas tão diferentes umas das outras.
O interesse dos franceses pela arte
Eu tenho um pouco a impressão de que os franceses têm muito interesse na arte brasileira aqui. Os franceses têm muito interesse em arte, né, antes de mais nada, e eles têm muito interesse pelo que é do humano e aquilo que é do mundo. É claro que é um interesse que em alguns momentos a gente entende que é um olhar que está em uma posição de privilégio, que olha um pouco de cima, que olha com um olho de quem procura o que é diferente, exótico, também.
E às vezes isso é bom, eu acho, para o teatro brasileiro, para a cultura brasileira, para a arte brasileira. Mas ao mesmo tempo eu fico às vezes me questionando também com relação àquilo que é vendido do Brasil aqui fora. Como que os brasileiros e o Brasil são apresentados, são mostrados para esse público que não conhece o Brasil profundamente. A gente sabe que há uma difusão de um Brasil folclórico, superficial, vitimizado, sofrido, de uma miséria.
Eu moro em Barcelona, e as poucas coisas que foram do Brasil para lá estão um pouco nesse lugar. Não critico, porque eu acho que é importante conhecer tudo, mas acho também importante que as pessoas possam ter contato com um Brasil mais profundo. Só que isso também só se dará quando houver mais quantidade também. Então é muito interessante pensar que, quanto mais espetáculos brasileiros estiverem no exterior, mais se conhece a complexidade do Brasil e mais se conhece o Brasil profundamente.
Experiência pode abrir portas
Eu acho que a experiência do “Tom” aqui pode certamente abrir portas. Nós também não somos os únicos, mas, realmente, é muito raro ter uma temporada tão longa. Em contrapartida, tem muita gente vindo fazer cada vez mais temporadas aqui na Europa, na dança, no teatro mesmo, e não só companhias, mas artistas brasileiros que acabam vindo pra cá de algum modo mostrar o trabalho e essa expressão do que é o Brasil – independentemente de o seu trabalho vender uma ideia de Brasil pré-concebida ou não, como é o caso do “Tom”.
Uma coisa que me faz feliz nesse trabalho e de ele estar aqui é que é um texto canadense, a gente não trata aqui de nenhuma questão que está ligada às raízes do Brasil. Quer dizer, a gente até trata da questão do patriarcado, da homofobia, elas estão estreitamente conectadas com as nossas raízes, aos nossos paradigmas de dominação colonial que estão em nosso DNA.
Em contrapartida, eu acho que o espetáculo não está interessado em apresentar essa expressão de um Brasil que já se conhece. O que há de brasileiro é o fato de sermos brasileiros, e essa brasilidade estar presente no espetáculo seja nos corpos, na estética ou na maneira como a gente faz uso do tempo e do espaço nesse trabalho.
Novos projetos no exterior
Temos montada uma turnê por quatro meses aqui na França, Bélgica, Suíça e alguns outros países de língua portuguesa e francesa. A gente já tem 45 apresentações em diversas cidades da França.
Existem muitos projetos, muitas ideias, muitas conversas sobre a possibilidade de trazer outros espetáculos brasileiros também para essa troca aqui, que é muito importante para nós, do Brasil, e também muito importante pra eles, aqui na França. Eu digo isso porque senão sempre fica parecendo que só a gente precisa, mas pra eles também é importante ver o trabalho que a gente está fazendo. Eu acho.